sexta-feira, 16 de agosto de 2013

Os valores da fome

Ao cuidado e atenção da dra. Dulce Rocha,

(vice-presidente do Instituto do Apoio à Criança que disse “a crise não pode servir de desculpa para os maus tratos às crianças”, “os valores têm de se sobrepor. Nós não podemos agredir uma criança porque estamos preocupados” quando comentava na antena da TSF o estudo do Núcleo Hospitalar de Apoio à Criança e Jovem em Risco que documenta o aumento dos maus tratos a crianças em Portugal, “aponta a negligência como o mau trato mais frequente. Desde a negligência passiva, em que as famílias não conseguem dar resposta às necessidades básicas dos mais novos, à negligência ativa, com intenção de provocar dolo e danos” lê-se na notícia.)

Quando decides ter um filho é sinal que tens esperança no futuro. Quando não tens esperança, já depois de teres sido afetada pelo desemprego e pela pobreza, ter um filho é um peso. É um peso. É horrível dizer isto, mas o filho que fizeste nascer não tem futuro, é assim que te sentes. Se tu que és mais alta, mais velha, mais forte não vês futuro, já perdeste a esperança, como podes acreditar que há esperança para o pequeno que tens na mão? Como é que podes acreditar que depois de te esforçares, de teres trabalhado 10 ou 20 ou 30 anos e teres ficado sem nada, depois de perderes pouco a pouco a eletricidade, o banho diário, a casa, a comida, a privacidade, a dignidade, como podes acreditar que ele tenha algum futuro, partindo agora de uma casa muito mais abaixo do que aquela em que tu começaste?

Quando decides ter um filho é sinal que tens esperança no futuro, mas não contas que o futuro não depende só de ti. Ou não depende nada de ti. Não sabes que por mais que trabalhes, que lutes, que te esforces, que rebentes, há coisas que não dependem de ti como… os financeiros da empresa onde trabalhas terem feito as contas certas, o Estado para o qual descontas não ter investido mal os teus impostos, o tempo em que tu vives não ser demasiado rápido para que num ápice tudo mude para pior.

Por isso, quando há uma crise, não daquelas que te atiram ao chão, mas daquelas que te encostam à parede e te dizem “o caminho acaba aqui”, tu és capaz de fazer o impensável – aquilo que disseste não entender, antes de perderes a esperança. É assim que aumentam os casos de maus tratos a crianças, que fizeram notícia esta semana. Estamos a tratar mal as crianças, como não acontecia há mais de 20 anos, não porque nos tornámos animais de repente mas porque estamos sem esperança, porque estamos cheios de medo, porque a tristeza nos está a comer por dentro.

A crise não é a desculpa é a causa. Olhas para o teu filho e ficas sem saber para que é que o fizeste nascer, porque vai passar por tudo isto e pior. Tens menos paciência quando ele chora, porque precisas mesmo de dormir para conseguires trabalhar bem amanhã, porque sabes que se trabalhares mal começas a ir para a lista dos próximos a despedir. Deixa-lo em frente à televisão horas a fio, para poderes limpar a casa e cozinhar de forma a transformar a pouca comida que tens numa refeição e para poderes trabalhar mais um bocado. Às vezes não chegas a tempo de o ir buscar à escola e ele vem para casa sozinho. Às vezes levantas-te demasiado cedo para o acordares e sais de casa em direção ao autocarro a desejar que ele oiça o despertador e que coma o bolicao que deixaste na bancada e que não seja raptado no caminho para a escola, nem violado pelo vizinho sinistro do quinto andar. E tens a certeza absoluta que o podias educar melhor se tivesses mais tempo e tens a certeza absoluta que podias trabalhar mais e melhor se não tivesses um filho. E desesperas e… ou te cortas, ou te bates, ou começas a tratar mal a quem mais queres. A tristeza começa a tornar-te um monstro, tu sabes e não te controlas porque já não és capaz.

A crise, dra. Dulce Rocha, não é a desculpa é a culpada, porque a crise fez desaparecer as condições mínimas de muitas de nós sermos as mães que queríamos ser, levou-nos a certeza do pão na mesa todos os dias, levou-nos a certeza de que, aconteça o que acontecer, os nossos filhos vão estar sempre protegidos da fome e da pobreza que alguns dos nossos pais sofreram em crianças.

Quando dizes que é preciso ter valores que se sobreponham eu gostava imenso de concordar contigo, mas não conheço nenhum valor que se sobreponha à necessidade de comer. Enquanto tu e outras pessoas com responsabilidades e contactos políticos vão dizendo que a culpa é exclusiva de cada pai e mãe que maltrata um filho, que a crise é só uma desculpa, cada pai, cada mãe e cada filho vai ficando mais sozinho numa vida horrível que lhe foi imposta. A crise é cada vez mais uma coisa lá longe que nada tem a ver com a vida das pessoas e aposto que esta ideia descansa muito a consciência de quem tem responsabilidades de tomar decisões que afetam todos. Para ti é “só” estar desempregado, para os que só tinham o trabalho como fonte de alimento é a vida inteira e a dos filhos que está no limbo.

Então, a minha proposta, dra. Dulce Rocha, é que uses a tua influência para personificar a crise junto de quem decide, de forma a que menos famílias sejam afetadas pela crise ou que, sendo isto impossível, que as famílias tenham sempre como garante condições básicas para criar os filhos, de forma a não desesperarem. Pode ser? Obrigada!


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