segunda-feira, 31 de março de 2008

Depois é melhor alguém limpar o tecto

O resultado de um parto como o meu, não podia ser bom. Não sei quantos pontos levei, porque a médica segundo me disse não os contou. Sei que estive mais de 20 minutos a ser cosida. Enquanto a médica tratava de mim, eu fui fazendo perguntas e pedi para ver a placenta. A médica olhava desconfiada para mim, não sei se espantada com a minha aparente consciência ou se incomodada por eu perguntar várias vezes o que é que ela estava a fazer. Eu juro que na altura era tudo curiosidade intelectual. Quando já não havia mais nada que eu quisesse saber olhei para o tecto e foi nessa altura que disse: "depois é melhor mandar alguém limpar o tecto." O tecto estava salpicado de sangue... do meu sangue.
Os dias seguintes mostraram bem que o parto correu mal. Eu inspirei inicialmente mais cuidados. Não me conseguia levantar, nem tanto por causa das dores mas por causa das tonturas. Cada vez que tentava fazê-lo, quase que desfalecia. Acordar para dar de mamar era um sacrifício. Sentia-me tão cansada que só queria estar deitada. Estava anémica por causa da perda de sangue e, apesar das doses de ferro intravenoso que tomei, o quadro manteve-se muito para lá do internamento. O meu útero era outro problema. Não estava a retomar a posição e as dimensões normais ao ritmo que devia. Por isso, apesar dos pontos todos e do corpo estar dorido, fui sujeita a uma ecografia endovaginal para ver o que é que se passava. No meio de uma festa de médicos e internos na sala de ecografias, em que todos vinham e íam alegremente para ver o estado do meu útero, foi-me proposto que me tirassem os coágulos à mão e a frio, logo ali. A alternativa era esperar que saíssem naturalmente, já que não era uma situação nada grave. Como é óbvio, eu preferi que a natureza tratasse das coisas. Mas o corpo humano é espantoso e, apesar do cansaço, ao terceiro dia de internamento eu tive alta. Fiquei feliz e contente. Só tinha que esperar pela confirmação da alta do meu filho para voltar a casa.
O médico que o tinha visto nos dois dias anteriores tinha-me dito que o meu filho só não tinha alta porque o parto tinha sido complicado mas que tudo estava bem com ele. Chegou a dizer que estava melhor que muitos bebés que tinham nascido em condições mais normais. Ao terceiro dia, só me restava aguardar pela vinda do médico para fazer a mala e ir finalmente para casa.
Nesse dia, veio outra pediatra avaliar os bebés. E fez-me uma pergunta em relação ao pai do meu filho, que já tinha ouvido antes: "O seu marido é muito moreno?" Eu disse que sim, que era tipo Figo. E então a senhora começa a debitar uma série de termos técnicos dos quais só percebi: desvio da supra-renal, malformação, lesão, hormonas, anemia "... e por isso vamos ter de fazer uma série de exames."
Foi um choque. De um momento para o outro o meu filho já não era saudável e era até possível que tivesse que ficar internado no Hospital Dona Estefânia. Seguiu-se uma série de exames, uma transfusão de sangue que demorou 4 horas e sucessivas colheitas de sangue. Ver um filho com uma veia cateterizada durante 24 horas, ouvi-lo chorar quando é picado, quando é despido, quando é apertado e perceber muito pouco do que se está a passar... não é pera doce... pelo menos. Tive logo ali um curso intensivo do que é ser mãe e sofrer pelos filhos.
No dia seguinte, o 4º do internamento em obstetrícia, o meu filho voltou a ser visto pelo pediatra inicial. E este achava que a sua colega tinha exagerado no diagnóstico. Este pediatra, pelo menos, falava português. Explicou-me que se suspeitava de uma alteração hormonal que podia ser crónica, que a anemia se devia provavelmente à violência do parto (eu teria ido buscar sangue ao cordão dele para compensar a minha hemorragia) e que podíamos ir para casa nesse dia. A consulta de endocrinologia já estava marcada, para saber os resultados finais das análises, mas que eu fosse descansada. E que a situação estava descrita no boletim de saúde do bebé. Infelizmente, a letra do médico era de médico e, até agora, ninguém (nem sequer a minha médica de família) conseguiu perceber o que lá está escrito...
Viemos para casa. E menos de uma semana depois, eu regressava ao hospital por causa de uma febre alta que não desaparecia. Nova ecografia, descoberta de coágulos, prescrição de antibiótico... Antes que o antibiótico acabasse, eu ía pela segunda vez às urgências. A febre reaparecia e com mais força, sinal de que a infecção uterina não tinha desaparecido. Desta vez, fui submetida a uma curetagem (vulgo, raspagem) para me tirarem os tecidos mortos. Como disse a médica Ana Bernardo - a única que me pareceu uma pessoa normal - "este não está a ser um pós-parto de sonho, pois não?"
A curetagem correu bem, eu regressei a casa na mesma noite e aos poucos fui voltando a ser quem era. Agora já tenho força, energia e entendimento - coisas que me faltaram durante mais de um mês. Por isso, escrevo agora. No texto seguinte hei-de opinar sobre os procedimentos e os profissionais de saúde. Agora não tenho tempo, o meu filho está a chamar.

terça-feira, 11 de março de 2008

O parto

(leitura não aconselhável a pessoas impressionáveis)

A primeira imagem eu tenho do meu filho é a de um bebé cinzento. Ele nasceu sem respirar e teve de ser reanimado para que pudesse viver. Lembro-me de estar na cama da sala de partos e pensar que ele estava morto. A pediatra interna chegou a dizer coisas como "eu não consigo", "estou a perdê-lo" e a pedir para que chamassem outro médico (suponho que o seu orientador). Depois de um momento que não sei definir, o bebé fez um breve som. Não um grito. Apenas um breve ahh. E nessa altura levaram-no para fazer exames e tratamentos. No processo, que incluiu máscara de oxigénio e massagem cardiotoráxica, uma voz dizia-me para me acalmar que era tudo normal. Não sei quem era a enfermeira ou médica que me dizia aquilo. Se eu estivesse em mim naquela altura, acho que lhe tinha batido. É normal que um bebé nasça quase morto? Não me parece e dá-me a sensação que isto aconteceu pela falta de cuidado dos vários envolvidos no parto, a começar pela enfermeira parteira que monotorizou a dilatação e o estado do bebé durante seis horas.
O grande dia começou às 9 da manhã. Às 41 semanas, entrei na maternidade pela urgência, como tinha sido combinado com a médica que me seguira até então. Não que já tivesse algum sinal de parto, não. A ideia era provocar o parto, depois da natureza e de sucessivos toques não o terem despoletado. Eu já estava farta e cansada da gravidez. No final aumentei 20 quilos, apesar dos cuidados alimentares que tive. Por isso, e contra tudo o que tinha lido, resolvi que era boa ideia provocar o parto. E estava tremendamente errada...
Então, fui para MHDE às 9h00 da manhã, onde dei entrada no serviço de ginecologia através das urgências. O atendimento começou logo bem, quando perguntei que indutor ía tomar. A sra. dra. achou que era mais interessante não me dizer o princípio activo do comprimido. Só depois uma enfermeira fez o favor de me explicar que o que eu ía tomar era prostaglandina.

Passei o dia inteiro no hospital. Caminhei nos corredores sempre acompanhada do soro e li um livro inteiro. Às 18h00 as contracções começaram, mas sem dor. Nessa altura comecei a perder líquido amniótico de forma muito leve. Fui para a sala de partos por volta das 20h00 e a dilatação estava a ser feita a bom ritmo. Por volta das 22h30 eu e o meu marido (que estava sempre comigo) falavamos que o bebé, provavelmente, ainda nascia nesse dia. A dilatação estava completa antes da 23h00.
Só que o bebé não descia. E então aumentaram as dores que já me tinham aparecido na zona mais baixa da barriga. Foi preciso receber 3 doses de epidural, para não me sentir mal. Mas enquanto não sentia dores também não sentia as pernas, nem sentia mais nada. Quase que adormecia. Mas como a dor não era das contracções pouco tempo depois voltou a doer. A verdade é que ela aparecia com a contracção, mas pela sua localização e sensação (parecia que ía rebentar) não podia ser uma contracção. Isto vejo eu depois porque durante o trabalho de parto não conseguia perceber nada. Só sentia a dor. E apesar de ter explicado a vários médicos e enfermeiros como era a dor, ninguém quis perceber que a dor era de outra coisa.
Até às 2h00 da manhã, não aconteceu nada. A enfermeira que está a vigiar a evolução do meu parto diz-me apenas para fazer força, para empurrar o bebé, para fazer mais força, para me por de pé, para me deitar... Eu estou estafada, cheia de dores, faço toda a força possível e não sinto evolução nenhuma. O bebé permanece sempre numa posição demasiado elevada para nascer. E de repente, a médica que me tinha atendido de manhã entra na sala de partos e explica-me que "vamos fazer o parto com ajuda". O meu marido teve que sair porque a intenção era usar ventosa. Nada no meu estado se tinha alterado. O bebé continuava lá em cima e, pelos sucessivos toques que a enfermeira parteira me fez, eu apenas percebia que havia qualquer coisa que não estava no sítio. Um obstáculo à saída do bebé, localizado no colo do útero.
A ventosa não funcionou e nessa altura, a médica toma um ar sério, diz "fórceps" e dois enfermeiros começam a empurrar a minha barriga. Bom, um deles, enganou-se e empurrou-me as costelas. Mas a noção de que me tinham partido uma só veio depois. Nesta altura, diziam-me para fazer mais força. Eu sentia umas dores horríveis e gritava muito. Mandavam-se estar calada, concentrar-me. É nesta altura que eu vejo a médica a fazer muita força, mas o corpo dela retoma sempre a posição inicial, porque o bebé não está a descer. O efeito é de mola.
E a mola era o cordão umbilical. Estava enrolado à volta do pescoço do meu filho e não o deixava descer. Foi preciso cortar-me e cortar o cordão umbilical lá dentro para que o bebé pudesse sair. O bebé saiu. Mas saiu cinzento e com imenso mecónio. O sofrimento dele era evidente, a ausência de respiração e de reacção foi horrível de ver. Mas o mais extraordinário de tudo, é que a minha primeira impressão é que o pessoal médico tinha feito tudo bem, porque o bebé estava vivo. Só depois, já em casa é que comecei a pensar no que podia ter sido feito e não foi.

Em primeiro lugar, há uma ecografia feita às 39 semanas, na maternidade, que não revela grande coisa. Nessa altura o cordão umbilical estava no ombro, segundo disse a médica (de quem desconfio como se pode ver num texto anterior). Mas às 32 o meu ecografista referiu a possibilidade do cordão umbilical fazer uma circular. Eu sei que o bebé se mexe muito (especialmente o meu, que às 40 semanas ainda andava aos pinotes) mas por isso mesmo, acho que se devia ter verificado onde estava o cordão na altura do parto. Por que razão não se faz uma ecografia nesta altura?
Depois, há uma enfermeira parteira que monitoriza a dilatação, que refere sentir um obstáculo à saída do útero, mas que prossegue na sua interpretação de que eu sou uma mariquinhas, em vez de tentar perceber que é desse obstáculo que eu me queixo a cada contracção e não da contracção em si.
De seguida há uma médica que resolve "ajudar" o nascimento porque lhe convém. Será que o turno estava a acabar? É que ela correu as salas todas (são 4) para fazer nascer os bebés que ainda não tinham tido a decência de sair... E o mais extraordinário é que a decisão de fazer ventosas não é dela. A enfermeira parteira deu-lhe a sua avaliação da situação e ela nem sequer fez algum exame para confirmar. E onde é que eu estava enquanto, rapidamente, se decidia o que fazer? Não estava. Ou melhor, estava mas não contava. Nem contava a opinião do meu marido, que podia pelo menos explicar que eu não sou de me queixar e se eu gritava é porque me doía mesmo muito.

Como disse antes, depois de ver o meu filho quase morto voltar à vida e umas horas depois já estar cheio de genica, acabei por achar que a carnificina que foi o nascimento tinha até corrido bem e que a equipa médica tinha feito todos os possíveis. Só depois, quando voltei às urgências da maternidade com uma de várias complicações decorrentes - uma infecção, é que percebi que tinham minimizado o meu sofrimento. A enfermeira parteira que viu o meu filho nascer estava de banco nesse dia e teve a distinta lata de me dizer que as hemorragias são normais no pós-parto. Isso eu também sei, mas eu não estava lá por causa do sangue. Eu tinha uma infecção uterina, com febre muito alta e por causa disso tive de sofrer, posteriormente, uma intervenção cirúrgica. Mas para aquela enfermeira é tudo normal... e ela até consegue diagnosticar uma hemorragia, só de olhar para a cara de uma pessoa.

quarta-feira, 5 de março de 2008

Estou de volta!


Depois de um parto que correu mal e muito longe das expectativas que tinha para ele, depois de uma chegada a casa complicada e de uma recuperação difícil, depois de tanto tempo sem escrever, andei a ponderar sobre a continuação deste blog. Afinal o bebé já nasceu e eu voltei para casa completamente desiludida com o SNS. Já não sei se hei-de acreditar que alguma vez as coisas mudem em Portugal. Porque se houve coisas que correram muito bem, o parto e as complicações decorrentes mostraram-me que ainda há muito proteccionismo de classe entre os médicos e muita burrice dos que trabalham em seu redor. E que de nós, utentes do SNS, se espera que saibamos o mínimo e perguntemos o menos possível. Sentia-me sem forças para reclamar.
Mas hoje li o comentário que a Sónia Curado deixou ao meu último texto e pensei que faz sentido falar destas coisas. Nem sei muito bem porquê. Mas acho que faz.